Prevalece
uma interpretação da Constituição de 1988 que dá ao Supremo a missão de
estabelecer uma igualdade não apenas formal, mas também substantiva entre os
cidadãos.
Por dez votos a zero,
uma votação unânime, o Supremo Tribunal Federal julgou, nesta quinta-feira,
constitucional o sistema de cotas raciais que reserva a estudantes negros parte
das vagas de universidades públicas brasileiras. Ao contrário do que ocorreu em
votações recentes de destaque, como a interrupção
da gravidez de fetos anencéfalos e a união de pessoas do mesmo sexo, a corte não assumiu o papel do legislador.
Como poucas vezes antes, no entanto, a corte insistiu numa interpretação
específica da Constituição de 1988 - que lhe daria a missão de buscar uma
"justiça substantiva" e não apenas "formal".
Relator da ação, o
ministro Ricardo Lewandowski deixou clara essa ideia nos primeiros instantes do
julgamento. "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza", lembrou Lewandowski. "Com essa expressão o legislador
constituinte acolheu a ideia de que ao estado não é dado fazer qualquer
distinção entre aqueles que se encontram sob seu abrigo." E emendou:
"Não se ateve ele, simplesmente, a proclamar o princípio da isonomia no
plano formal, mas buscou emprestar a máxima concreção a esse importante
postulado, de maneira a assegurar a igualdade material ou substancial a todos
os brasileiros e estrangeiros que vivem no país."
Para que a
"igualdade material" seja levada a cabo, defendeu o ministro, o
estado pode adotar as chamadas "ações afirmativas", das quais as
cotas raciais são o exemplo mais notório. O próprio ministro apontou, e relevou,
os efeitos contrários da reserva de mercado adotada por universidades públicas.
"Qualquer critério adotado colocará alguns candidatos em desvantagem
diante dos outros, mas uma política de admissão pode, não obstante isso,
justificar-se, caso pareça razoável esperar que o ganho geral da comunidade
ultrapasse a perda global." Ressalvou apenas que as cotas devem adotar
critérios "razoáveis" e sobreviver por "tempo limitado".
Acompanharam o voto do
relator Luiz Fux ("Uma coisa é vedar a discriminação e outra é implementar
políticas que visem a redução da discriminação racial"), Rosa Weber
("Sem condições materiais mínimas, não há chance de igualdade (...) Nesses
casos, é necessária a intervenção do estado"), Cármen Lúcia ("A
Constituição parte da igualdade para a igualação"), Cezar Peluso
("Não posso deixar de concordar com o relator que ideia é adequada,
necessária, tem peso suficiente para justificar as restrições que traz a certos
direitos de outras etnias"), Marco Aurélio Mello ("Não se pode falar
em Constituição Federal sem levar em conta acima de tudo a igualdade") e
Celso de Mello ("Cotas são instrumento compensatório"). Joaquim
Barbosa, único negro da corte e defensor inequívoco das cotas, fez uma
apresentação breve. Chamou mais atenção no dia anterior: deixou o plenário
durante a argumentação da advogada do DEM, Roberta Fragoso Kauffman, e, ao
voltar disparou contra os opositores em aparte a Lewandowski: "Basta ver o
caráter marginal daqueles que se opõem ferozmente a essas políticas (de cotas)."
Os ministros disseram
que as cotas raciais não ferem a Constituição. É uma argumentação jurídica
solidamente embasada. Contra ela, não há o que arguir. Menos certo é que as
cotas raciais sejam a ferramenta mais adequada para alcançar os objetivos
igualitários com elas buscados. Mesmo votando com a maioria, o ministro Gilmar
Mendes fez ressalvas às cotas. Se o alvo é a igualdade, disse ele, melhor seria
observar a condição financeira dos candidatos. "Seria mais razoável
adotar-se um critério objetivo de referência de índole sócio-econômica",
disse. O ministro criticou duramente ainda outras imperfeições do modelo, como
a eleição de um "tribunal racial", responsável nas universidades por
apontar quem pode ser beneficiado pela reserva de vagas. "Todos podemos
imaginar as distorções eventualmente involuntárias e eventuais de caráter
voluntário a partir desse tribunal que opera com quase nenhuma transparência.
Se conferiu a um grupo de iluminados esse poder que ninguém quer ter de dizer
quem é branco e quem é negro em uma sociedade altamente miscigenada."
É também mais do que
duvidosa a ideia de que a função das universidades seja sanar desigualdades
sociais. As melhores instituições acadêmicas do mundo são centros de excelência
que escolhem seus estudantes para produzir conhecimento - e não para realizar a
justiça. Preterir um candidato por outro menos qualificado tende a
empobrecer a universidade, e tornar mais difícil a ela realizar o seu papel.
Nesse sentido, uma discussão que ressaltasse a importância da pluralidade num
ambiente acadêmico estaria melhor encaminhada. Esse valor só apareceu como
coadjuvante no debate do Supremo. "A Constituição Federal preceitua",
lembrou o relator, "que o acesso ao ensino será ministrado com base nos
seguintes princípios: igualdade de condições para acesso e permanência na
escola; pluralismo de ideias e gestão democrática do ensino público."
Também é irresistível
indagar por que os defensores da reserva racial não investem os mesmos esforços
no resgate do sistema público de ensino fundamental, que avança da situação
medíocre para a sofrível (excetuadas raras exceções). Se redefinissem a mira,
do topo para a base da pirâmide, os cotistas poderiam ajudar milhões, ao invés
de apenas milhares – negros e brancos.
Segundo dados da
Educafro, ONG defensora do regime racial, dez anos de cotas colocaram 110.000
estudantes nas universidades públicas brasileiras. Enquanto isso, 26 milhões de
crianças e adolescentes de escolas públicas de ensino fundamental, que não
aprendem o que deveriam e precisam, esperam por uma "ação afirmativa"
que as conduza ao menos até o ensino médio. Pouquíssimos chegam às portas do
nível superior para receber o empurrão definitivo para dentro de uma
universidade de ponta. Elevar efetivamente o ensino fundamental público,
possibilitando a crianças de escolas dos governos ombrear com aquelas das
unidades privadas, daria mais chances à transformação nacional com que sonham
ministros do STF e os brasileiros de bem. Em seu voto a favor das cotas,
Lewandowsi se apoiou adicionalmente no argumento de que "o que não se
admite é a desigualdade no ponto de partida". É difícil imaginar um ponto
mais propício para a partida igualitária entre brasileiros do que o ensino
fundamental.
Fonte: Veja.abril.com